O QUE VALE UMA BIOGRAFIA? VIDA E FICÇÃO DE CIVONE MEDEIROS* por Rousiêne Gonçalves (Letras/UFRN)

O QUE VALE UMA BIOGRAFIA? VIDA E FICÇÃO DE CIVONE MEDEIROS (fragmento)*
XIV Encontro Nacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), Belém/PA, 2014

* Este artigo apresentado e publicado nos Anais da XIV ABRALIC (Belém/Pará, 2014) dá início a uma Reflexão de #RousiêneGonçalves sobre o gênero biográfico a partir da sua experiência (impossível) de Biografar a Vida de uma Artista...

Rousiêne da Silva Gonçalves (UFRN)625*
Eduardo Aníbal Pellejero (UFRN)626* 

RESUMO: Espera-se de uma biografia que o relato apresente pistas seguras sobre a vida. Uma realidade que se dobra em outra. Os fragmentos da existência, suas marcas nos lugares, em depoimentos de terceiros, nas entrevistas, em todos os espaços possíveis, constituem o material sobre o qual o autor tentará montar uma experiência real. Porém, escapam a uma coerência, negam-se e afirmam-se mutuamente, prestam-se uns aos outros ao falseamento e à confirmação. Rastro que se dispersa e ainda é rastro. Uma tentativa. Buscamos compreender de que maneira a biografia que se pretende constituir sobre uma poetisa viva apresenta-se, ao mesmo tempo, como uma impossibilidade. Refletiremos à luz dos escritos de Blanchot e Foucault sobre a experiência do fora que, embora distinta nos dois autores, relaciona-se com as experiências da pesquisadora na construção da biografia de Civone Medeiros, a partir de relatos espontâneos de amigos, leitores, artistas e demais pessoas que têm ou tiveram contato com a sua obra e sua vida, ainda, através de documentos, jornais, sites e revistas que apresentem informações e trabalhos da poetisa. Faz-se uma reflexão sobre a escrita biográfica enquanto errância, experiência imediata que, ao mesmo tempo em que revela um passado é ausência deste, que evidencia uma vida, mas não a afirma. Uma ação nômade num deserto que por si já está ausente, ao mesmo tempo, revela a fragmentação do biógrafo enquanto autoridade sobre a existência do biografado. O sujeito que escreve desaparece para dar lugar às infinitas vozes sobre a vida do outro, numa profusão de olhares que, ao chocarem-se e encontrarem-se mutuamente, refratam a existência da autora que se pretende biografar. A biografia enquanto narrativa não autoral, caleidoscópica e, por isso mesmo, não se presta à exclusão e nem à exaustão, mas à multiplicidade.

Palavras-chave: Biografia. Impossibilidade. Ficção. 

1. Introdução: Um texto pode apresentar pistas seguras sobre a vida de alguém? Caso não apresente, podemos considerá-lo biografia? Ao escrever a biografia de Flaubert, Sartre () questiona sobre o que se pode saber de um homem hoje em dia, pois nesta tentativa buscamos totalizar as informações sobre alguém, porém, nada pode provar esta totalização seja possível e que a verdade de alguma pessoa não seja múltipla, ao mesmo tempo, pensar sobre a relação do homem com a obra é algo possível, mas problemático, pois a tentativa não é explicar a vida a partir da arte, muito menos compreender o trabalho artístico a partir da vida, porém, os pequenos fragmentos que, a partir dessa investigação biográfica, levantam questionamentos podem problematizar a obra e assim a arte poderá ter uma dimensão próxima a uma forma de vida.

Neste trabalho, buscamos compreender como a biografia que se pretende constituir sobre Civone Medeiros, poetisa viva, apresenta-se, ao mesmo tempo, como uma impossibilidade. 

Civone Medeiros, antes de publicar poemas, surge como atriz, em 1988, na peça Anjo Maldito, do grupo Teatro Mágico, inicialmente chamado Subgrupo de Teatro, definido pelo diretor, Véscio Lisboa Subhadro como um trabalho anticonvencional. A artista é caracterizada por alguns contemporâneos como alguém que está à frente do seu tempo, por outros, como uma performer com inúmeras aptidões, pelo público e amigos mais jovens como um grande talento da arte contemporânea, também, como uma louca que gosta de chamar a atenção. Fato é que são muitas falas sobre a mesma pessoa, personagem que se espalhou pela cidade através de inúmeras imagens. Quase impossível prever encontros, capturá-la.

Estávamos num bar, no bairro da Ribeira, em Natal-RN, no ano de 2012, quando uma mulher muito bonita, mais ou menos da minha idade aproxima-se e pergunta se sou eu quem vai estudá-la. Após confirmação, grita que está bem perto, tira meus sapatos e num gesto performático beija meus pés. Aquele foi nosso primeiro contato a partir do qual todas as experiências de captá-la pareciam fluidas, pelos encontros que não ocorriam ou mesmo pelo movimento múltiplo da artista, de alguma forma a experiência era em si muito vaga. 

A fotografia me pareceu bastante eficaz, uma vez que poderia, a partir das imagens, constituir um corpo, um conjunto de registros que possibilitassem um recorte minimamente fiel a alguma realidade. A ideia seria relacionar as imagens das performances aos poemas de Escrituras Sangradas, recitados sempre em suas apresentações, observando o que extrapolava o texto escrito, mas nunca poderia a fotografia representar o momento da performance, uma vez captada a imagem da cena, ela já seria outra coisa, uma proliferação de imagens. A fotografia sobre a performance, a performance sobre o texto escrito. Nada a recuperar. 

Escrituras Sangradas foi publicado em 1999, como encarte, com uma tiragem de 100 exemplares, Janaina Spinelli, amiga da artista, apresentou uma performance no dia do lançamento, diz que as páginas foram jogadas para cima pela poetisa e poucos ficaram com o livro inteiro, ela, no entanto, guardou o livro completo por 15 anos. No prefácio do livro, o poeta, professor e crítico literário Bianor Paulino da Costa, afirma: 

Falar sobre a poesia de Civone Medeiros Tönig é se colocar diante do poema moderno e, de imediato, indagar o que seria uma composição poética, pelo menos, tendo em vista a apreensão ou a elaboração da poesia pelo poema. Inspiração ou transpiração. Eis o dilema da poesia contemporânea. É impossível estabelecer um tipo de composição ou um juízo de valor absoluto na poesia hodierna, já até então problematizada por Rimbaud e Mallarmé em suas diferentes estéticas. 627*

Em 2009, publica a segunda edição de Escrituras Sangradas, dez anos depois, a  mesma obra e novos olhares.  João Batista de Moraes Neto 628*, professor e poeta, comenta: ―o texto escrito  sangrado na página, dialoga com a performance, com o corpo solto no texto das ruas, do  cotidiano, do beco, do mundo‖ (MEDEIROS, 2009).

Para Camila Loureiro, navegar entre a poesia de Civone é a experimentação  estética de êxtase e redenção, escreve: ―A sangria dos versos é um fluxo, um orgasmo,  um grito, um rapto, um espasmo do seu ‘devir mulher’ sempre em movimento da contracorrente, do contra sentido e da contracultura [...]‖.

Sua obra é apresentada como uma poética corporal, em que o corpo fala uma lírica apresentada pelo grito, pela transpiração, pelos fluxos, para outros, como uma arte que se espalha pela cidade em pequenos fragmentos, pulverizada. ―Não há nada que me emocione da poesia de Civone‖ afirmam alguns.

2. Diálogos entre vida e arte

A liberdade de Civone Medeiros dialoga com sua arte que, segundo a própria artista, não está dissociada da vida. É relacionada, muitas vezes, à liberdade do corpo. 

Há relatos sobre a sua nudez nas performances, tanto quanto há relatos que afastam a performance da vida. O fotógrafo Lenilton Lima, amigo da artista, afirma que as pessoas sempre colocaram Civone como alguém que tirava a roupa em performances, mas ele nunca viu a artista nua. 629* 

Para Lenilton, muitas pessoas confundem a artista com suas performances e os mais diversos relatos tem relação com a sua sexualidade, sobre tais boatos, ele acrescenta: 

[...] Eu vejo Civone como uma pessoa livre, de, pelo menos ela tenta ser livre, liberta de tudo, mas eu vejo Civone também como uma pessoa careta, tem cosias que Civone me conta que eu não acredito que é de Civone então [...] ela pode até fazer, mas acho difícil pelo que escuto e vejo dela, por que o tipo de liberdade que ela busca não é esse, acho que isso é uma viagem [...]. 

A nudez incomoda, lembra a curadora Sanzia Pinheiro, ao ser questionada sobre algum trabalho impactante da artista. A relação que Civone estabelece com a nudez é algo que está bem presente em seu trabalho e isto não é compreendido pelo público de Natal/RN. Porém, afirma que esta relação é muito natural, apesar de ser motivo de forte incômodo das pessoas. Sanzia conta que, numa performance, a artista se colocou como livro vivo, sobre o qual as pessoas deveriam escrever, algumas ficaram muito incomodadas, e, segundo a curadora, deixaram de perceber o que ela fazia ali. 

Os depoimentos de Sanzia e Lenilton podem inferir que a relação natural com a nudez deixa margem para assombros sobre a atitude sexual da artista, causa choques. O corpo nu de Civone, experimentado no momento da performance, não pode ser resgatado, mas deixa um rastro, quando a imagem é capturada:

O que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorre uma vez, ela repete mecanicamente o que nunca poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo. 630* 

Esta redução Barthes vai nomear de punctum, o detalhe da imagem, que funciona como detonador do qual pode saltar um ponto de explosão, qualquer coisa que, mesmo à revelia do fotógrafo, é o que detém o olhar. 

Salta o sexo, salta o sangue. Para Sanzia, a arte de Civone é visceral, sobre vísceras a curadora relata um encontro em que a artista, após a sua fala, tira de dentro do vestido um coração de boi e o põe sobre a mesa, o fotógrafo nos diz também de uma performance na qual a artista cortou-se; Maurício, um produtor cultural que também acompanhou Civone durante uma fase de sua vida, nos fala sobre os ―cacarecos‖ 631*, diz que tudo que ela recolhe tem uma força, um valor, qualquer lixo pode ser arte e ao serem dispostos novamente pela cidade têm uma força de preenchimento e assume outra performance, assim, através destas extensões, a artista toma conta da cidade, pulveriza-se, o cacareco é o puncutm do lixo. (...)

Este detonador pode ser encontrado nas biografias, é o detalhe da vida do biografado que salta aos olhos, nada parece interessar mais do que o biografema 632* ‘naquele momento do relato’ uma obstinação. Talvez um biografema seja algo tão ínfimo que seja considerado por um único leitor, mas outro será para alguém num determinado momento, porém, nada ele dirá sobre a artista. Ou dirá algo. O biografema é o detalhe do olhar do escritor e talvez o suplemento do relato de vida, não há pretensão no relato, no depoimento, mas pode surgir em tais histórias algo que chame a atenção e cause, no escritor, um lampejo que o remete à criação de sentidos que não tentam resgatar uma vida, mas gere outros sentidos a partir desta vida. (...)

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* 625 Rousiêne GONÇALVES. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) rousi_g@hotmail.com
* 626 Eduardo ANÍBAL PELLEJERO. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) estética.ufrn@gmail.com

* 627 (MEDEIROS, 1999)* 628 As apreciações de João Batista de Moraes Neto e Camila Loureiro estão presentes na segunda edição digital dos dois livros da obra Escrituras Sangradas lançada em 29/10/2009. Disponível apenas em pdf:www.escriturasangradas.blogspot.com e www.issuu.com/civonemedeiros* 629 Lenilton Lima é fotógrafo, produtor cultural, coordena atualmente um ponto de cultura em São Gonçalo do Amarante. Atuou como fotógrafo e militante cultural nos anos 90, ao lado de Civone em diferentes projetos. Define-se como seu irmão afetivo, amigo e grande admirador. * 630 (BARTHES, 1984, p. 51)* 631 Entrevista concedida em 12 de agosto de 2014.* 632 Biografema é o termo criado por Roland Barthes para designar o detalhe da biografia que se torna relevante. O termo foi utilizado em A Câmara Clara, comparado à fotografia em relação á História, porém, foi empregado pela primeira vez em Sade, Fourier, Loyola. 

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